Quando dois autores que se dizem especialistas em bolhas tech, escrevem um livro em 2024 sobre IA, você precisa considerar.
Além do livro, um paper cheio de teorias e comparações com a bolha .com foi publicado em diversos meios de comunicação.
Voltei muitas casas no jogo da vida para buscar mais exemplos e histórias para contrapor todos argumentos apresentados, tentando enriquecer o debate proposto pelos autores.
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Agora, como diria meu amigo Lito, senta que la vem história!
Brace for impact.
Essa foi a frase escolhida pelos professores Jeffrey Funk e Gary Smith para descrever o momento atual da inteligência artificial no mundo.
E neste post vou usar a opinião deles para explorar um pouco mais deste panorama.
Primeiro, quem são eles?
Jeffrey Funk é um professor aposentado e vencedor do prêmio mobile science da NTT DoCoMo. Seu livro mais recente é "Unicorns, Hype and Bubbles: A guide to spotting, avoiding, and exploiting investment bubbles in tech" (Harriman House, 2024). Funk acabou de escrever um livro sobre como explorar bolhas de investimento em tecnologia, e Smith é um especialista em "desmascarar" o mau uso de dados. Smith argumenta que o perigo da IA não é os computadores serem mais inteligentes que nós, mas nós confiarmos demais neles (porque pensamos que eles são mais inteligentes)
Gary Smith é professor de economia no Pomona College e autor de mais de 100 artigos acadêmicos e 17 livros, mais recentemente (co-autoria com Margaret Smith): "The Power of Modern Value Investing: Beyond Indexing, Algos, and Alpha," (Palgrave Macmillan, 2024).
Para Jeffrey e Smith, a “bolha da IA” será muito maior que o estouro da bolha das empresas .com.
Vou navegar pelos argumentos que eles trouxeram, mas trazendo contrapontos e explorando uma abordagem que normalmente não é explorada: Conceitualmente, em uma bolha se criam distorções de valor. Assim, uma empresa que deveria nem existir, passa a ter um valor, muitas vezes, não desprezível. Mas, por outro lado, também se cria infraestrutura, tecnologia e muito valor agregado em quem consegue passar por esta fase.
Na bolha do .com, muitas empresas foram incineradas, principalmente startups que surfaram a onda da internet para vender algo que, naquele momento, ninguém precisava. Mas por outro lado, outras acabaram apenas retornando ao valor que deveriam ter.
Já no grupo das sobreviventes, as empresas viram seu valor de mercado ser inflado por conta da bolha. Mas é importante ressaltar que alguns dos pilares da economia da internet foram formados nesta época: Amazon e Google.
E aqui entra uma das principais diferenças entre os dois momentos: As taxas de juros eram ridiculamente baixas e o acesso ao capital era abundante.
Um dos casos mais emblemáticos da bolha: Pets.com
A loucura que levou à formação da bolha das empresas .com, em parte, pode ser atribuída a enxurrada de capital que foi despejado sob a economia. Como resultado, muitos modelos de negócios baseados em uma ideia e um ppt nasceram e, em pouquíssimo tempo, se tornaram empresas de capital aberto.
Mas, toda história de terror tem um sobrevivente no final. E nesse time colocamos empresas ponto com como Amazon e eBay, que se adaptaram rapidamente e sobreviveram à quebradeira generalizada.
Quais lições podemos tirar destes casos?
A Pets.com atraiu grandes investidores, como a própria Amazon, apesar dos sinais de alerta em seu modelo de negócios.
A empresa, que arrecadou 82.5 milhões de dólares em seu IPO, chegou a atingir um market cap de 300 milhões de dólares. Mas, nove meses depois, emitiu um pedido de falência.
A Pets.com parecia ter um modelo de negócios falho desde o início, incluindo a competição com lojas de animais e dificuldades para enviar grandes itens, como sacos de ração para cães.
A empresa apostou em um rebrading, surfando a onda .com e se posicionando como uma empresa de tecnologia.
A Ascensão:
A Pets.com era um e-commerce onde os usuários encomendavam suprimentos para animais de estimação no site e a empresa entregava. Durante a bolha das .com, a Pets.com foi uma das cinco lojas de animais online que surgiram.
Mas qual destaque da empresa frente as concorrentes? Seu mascote em forma de fantoche de meia e seu slogan cativante! Fantoche este que chegou a ser destaque no desfile de Ação de Graças da Macy's em 1999.
Nem questões importantes para a época e cruciais para o negócio como “existe uma forma econômica de enviar sacos de mais de 10kg de ração pelo correio?” foram alarmantes para seu modelo de negócio. Seus investidores, cegos pela bolha, embarcaram no problema.
Aqui entra outro problema: O efeito em cascata. O mesmo sistema de dependência criado hoje entre algumas empresas de tecnologia, na época também estavam presentes. A Amazon tinha uma participação de 50% da empresa. O IPO foi em fevereiro e já em outubro, a Pets reportou não conseguir mais gerar receita. Em novembro, a empresa declarou falência e fechou suas portas, com suas ações negociadas a 0,22 dólares no dia do anúncio da falência.
Modelo de Negócios Cheio de Falhas:
O problema com o plano de negócios da empresa era que os suprimentos para animais de estimação de todos os tipos — comida, brinquedos, roupas, e assim por diante — podiam ser encontrados facilmente no supermercado ou pet shop mais próximo. Dado o dilema entre encomendar online e esperar pela entrega ou ir à loja mais próxima para comprar o produto e levá-lo para casa imediatamente, a maioria das pessoas preferia a segunda opção.
Temos hoje exemplos de empresas como a própria Amazon, Mercado Livre, dentre outras, que criaram verdadeiros impérios dessa forma, mas nestes casos existiam muitas outras coisas além no modelo de negócios.
Nove meses consecutivos de perdas convenceram a empresa a encerrar as operações, vendendo todos seus ativos para sanar dívidas.
Para dar algum crédito à Pets.com, ela usou os fundos arrecadados pela venda dos ativos para devolver o máximo possível aos investidores.
O caso da Pets.com também escancarou uma história bem mais complicada, dessa vez do lado dos bancos de investimento, que também surgiram com o boom da internet. Mesmo após a empresa apresentar perdas, ver suas ações em queda livre e não ter nenhum plano de recuperação desenhado, um analista da Merrill Lynch, um dos bancos responsáveis pelo seu processo de IPO, não mudou sua recomendação de compra até o verão.
Henry Blodget, inclusive, ficou bem famoso após isso. Após colecionar histórias como essa, ele foi enfim demitido e “banido do mercado”. E o que ele fez? Fundou uma empresa de mídia, a famosa Business Insider (nome bem sugestivo), que futuramente, inclusive, teve um percentual adquirido por Jeff Bezos (sim, da Amazon, de novo)!
Hoje, milhões de empresas de AI estão surgindo e, diversas delas, tendo fatias relevantes sendo adquiridas pelas Big Techs. Ainda não estamos nos deparando (ou já nos acostumamos) com os níveis de valor de mercado de diversas dessas empresas. Parafraseando o CEO do Google, nessa corrida vai ser melhor investir de mais do que de menos. A abundância de capital mudou de mão, hoje são as big techs que estão com o caixa gordo, esperando uma oportunidade!
Telecom x Energia: Épocas diferentes trazem problemas diferentes
Outra comparação que podemos traçar foi o investimento pesado no setor de telecom na época, versus o investimento que estamos vendo em diferentes fontes de energia. O pesado investimento em infraestrutura de telecomunicações, especialmente em fibra ótica, levou a um excesso de capacidade que levaria anos para ser utilizado. Empresas como a Global Crossing faliram, pois não conseguiram cobrir a dívida que haviam contraído para construir essas redes.
Diferente disso, hoje já temos um consumo brutal de energia por conta de datacenters, que só tende a ser mais demandado pela expansão da inteligência artificial. Por isso, essa comparação fica bem delicada, pois as bases são completamente diferentes.
O futuro após o estouro…
Quando falam que a bolha estourou, essa é a imagem que vem na cabeça de muitos:
Mas temos que parar para pensar o que essa revolução da internet proporcionou em termos de desenvolvimento. E isso é muito comparável ao que todos falam hoje sobre IA. Na época, o capital era abundante e estava sendo despejado em qualquer empresa cujo nome terminava com .com. Hoje, o cenário macro é outro, com =taxas de juros mais altas, o que faz o mundo dos investimentos ser muito mais desafiador. Mas, por outro lado, temos empresas valendo mais de um trilhão de dólares com muito, mas muito dinheiro em caixa.
E essas empresas estão dispostas a investir!
Quem investiu “na internet”, saiu vitorioso. Olha o mundo que se criou após o estouro da bolha do .com. Se no final as pessoas tivessem voltado ao mundo offline, o argumento poderia ser esse. E aqui que está o maior cuidado que se deve ter para investir hoje, e que parece que muita gente já está passando por cima!
A revolução da internet pavimentou o caminho para o futuro. Mas a estrada não é reta, e se você não souber dirigir, vai cair no desfiladeiro!
Contrapondo os argumentos de Jeffrey
O uso de serviços essencialmente gratuitos — como redes sociais, e-mail, mensagens e outros aplicativos — não significa que eles sejam particularmente úteis.
O uso da IA está crescendo de forma muito maior do que o da internet. O autor, no entanto, considera isso irrelevante. Porque?
Em 1999, um computador custava 5 mil dólares e a internet 113 por mês. Custos altos geraram grandes expectativas de retorno.
Hoje, os serviços de IA Generativa são majoritariamente gratuitos para testar e até usar de forma intermediária.
O custo substancial de acessar a internet há 30 anos significava que os usuários esperavam grandes retornos. O custo mínimo de acessar o ChatGPT e outros sistemas de IA generativa hoje significa que os usuários não precisam de um grande retorno, ou de qualquer retorno, para experimentá-los.
Jeffrey se baseia o tempo todo no uso de serviços “gratuitos” e, assim, coloca o ChatGPT no mesmo pacote do TikTok, e-mail, dentre outros serviços online. Em sua análise, ele reforça que o número de horas que uma pessoa passa fazendo algo não pode ser usada para determinar seu retorno econômico. Ele ainda finaliza dizendo que existem poucas evidências sobre o ganho de produtividade após o surgimento da IA.
Ainda mais neste ponto do desenvolvimento da tecnologia, esse argumento me parece raso e extremamente falho. Além de classificar os serviços de mesma forma e não utilizar nenhuma métrica decente de previsibilidade de ganho de produtividade, o autor ainda esquece da economia baseada na internet que surgiu após a bolha .com.
O custo para a sociedade com chips de IA, além do talento, eletricidade, água e mais necessários para fabricá-los, atualmente supera em muito o retorno.
A criação e o fornecimento de IA generativa ainda são caros. Primeiramente, já abordei no Trend Override que estima-se que os próximos modelos da OpenAI possam custar até 15 bilhões de dólares para serem desenvolvidos. Além do treinamento, quantos chips da Nvidia e AMD iremos precisar para isso? E quanto de energia e água precisaremos para fabricar esses chips? Na ótica do autor, esse investimento supera muito o retorno.
Assim como o primeiro argumento, este vem cheio de falhas. Não estamos nem na metade do estágio de desenvolvimento dos modelos de IA (vou explicar no final), como o autor pode inferir que o investimento supera o retorno? Todo negócio parte de investimento, e muitos deles, no inicio, estavam longes de parecer uma boa ideia.
Por exemplo, o primeiro carro a transportar uma pessoa foi criado em 1769 por Nicolas-Joseph Cugnot. Com uma autonomia de 12 minutos, pesando 2.5 toneladas e atingindo uma velocidade máxima de 4 km/h, esse carro na época podia estar longe de parecer uma boa ideia. Mas e tudo que foi destravado após essa invenção?
Usar IA generativa pode ser barato, mas criar serviços úteis a partir dela não é.
Para esse argumento, o autor utiliza um exemplo, de uma jornalista que criou um bot, alimentado pelo Gemini do Google, para ajudar usuários a decidir sobre o upgrade ou não para o iPhone 16. Ao final do experimento, além de concluir que o bot pode sair do trilho por diversas vezes, indo bem longe, eles também a levaram a um alto custo para rodar.
Honestamente, esse caso mais me parece uma pessoa que deu um Google rápido nas palavras bot + iPhone 16 + comparison + Gemini e copiou as primeiras coisas que viu. Hoje existem milhões de ferramentas gratuitas de criação de bot, além de uma API para consultar uma informação tão particular (e que não muda) seria bem barata de se construir. Meu palpite é que ela não limitou uma quantidade máxima de consumo de uma API, fez um teste que ficou perguntando a mesma coisa 3000 vezes e, no fim, pagou a conta. 🤡
Por fim, a conclusão numérica da bolha .com comparada a bolha da IA:
Podemos comparar a bolha da IA generativa com a bolha da internet olhando para as receitas em 2000, no auge da bolha .com, e as receitas da IA generativa em 2024. Um estudo estima que 134 milhões de PCs foram vendidos em 2000, o que, a $5.101 por computador na época, equivalia a cerca de $684 bilhões em receita. O número de usuários globais da internet era de cerca de 361 milhões em 2000, o que, a $113 por mês, equivale a cerca de $489 bilhões em receita (ou $850 bilhões em dólares de 2024). O comércio eletrônico também gerou muita receita em 2000. Um artigo de março de 2001 relatou que o mercado de e-commerce em 2000 foi de $286 bilhões (ou $500 bilhões em dólares de 2024). O comércio eletrônico tem sido uma fonte de receita crescente à medida que nos acostumamos a comprar online.
Juntando esses números, a internet gerou mais de $1,5 trilhão em receita (em dólares de 2024) em 2000 — e a bolha da internet ainda estourou. A IA generativa, por outro lado, atualmente gera menos de $10 bilhões. Se a bolha estourar, será um estrondo enorme.
Aqui o problema é temporal. Essa comparação pressupõe que estamos no auge da evolução da IA, o que, ao meu ver, está muuuuuuuuuuito longe de ser verdade.
It’s evolution, babe.
A revolução da IA é apenas mais uma vez que a história se repete.
Existem diversos paralelos, não só com a revolução da internet, quanto com a revolução industrial ou até acontecimentos históricos mais antigos.
Algumas coisas são comuns a praticamente todas, como transformação profunda nas relações de trabalho, sociais, desemprego tecnológico, privacidade, desigualdade digital, concentração de poder, tensões sociais, dentre outros.
Considerando um paralelo com essas outras revoluções, esses eventos históricos estão prestes a se repetir (alguns deles estão já acontecendo):
Automação de tarefas cognitivas
Novos tipos de empregos
Necessidade de requalificação
Responsabilidade por decisões automatizadas
Vieses algorítmicos
Impactos na autonomia humana
Interdependência tecnológica
Regulação da IA
Impactos sociais
Direção do desenvolvimento tecnológico
Novas formas de comunicação
Mudanças nas relações sociais
Transformação de valores
São diversos pontos que podemos explorar!
Mas é importante lembrar onde estamos? O autor do paper sugere que estamos em um lugar que, certamente, não estamos. Temos muito mais para desenvolver, aprender, implementar.
Os novos modelos que estamos explorando semanalmente por aqui sugerem que estamos entrando na fase 3.
O autor também não considera a possibilidade dessa evolução ser exponencial, como proposto abaixo.
A OpenAI pode ter diversos defeitos, mas ela mostrou para o mundo que podemos encurtar em muitos anos esse desenvolvimento.
Para quem gosta de estudar, esse é o momento. Muita coisa nova surgindo, interessante para implementar, testar, debater e principalmente ajudar.
Posts mais específicos irão vir, portanto, fique sempre ligado!
Nesse post tentei usar a ideia do autor para fazer algo que, na minha ótica, seria mais interessante.
Traçar paralelos, ver onde podemos estar errando, o que podemos trazer de lições e os cuidados que devemos ter em investir em inteligência artificial.
Meu trabalho aqui nunca será sobre previsão de futuro. O passado está aí para que possamos aprender com ele. O autor ignorou isso.
Sigo otimista demais com tudo que está sendo desenvolvido, mas do jeito certo, utilizando as ferramentas e encaixando tudo no seu devido lugar.
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